Todo final de ano é a mesma coisa: a programação da TV e as salas de cinema surgem recheadas de filmes com histórias “edificantes”. Na esteira desse clichê institucionalizado pela indústria do cinema norte-americano, Noite de Ano Novo (2011) está para as plateias das salas escuras assim como os programas especiais que a Rede Globo costuma apresentar no mês de dezembro, ano após ano. A semelhança? As histórias são batidas, não apresentam nada de inovador e a grande responsabilidade cai nas costas do elenco feminino, em específico no filme que estreou na última sexta-feira.
Noite de Ano Novo, a mais recente produção do diretor Garry Marshall, foi produzido sob encomenda como um bom produto para consumo no período de festas. Seguindo a linha peru de Natal, a aparência dele seduz e seus algozes, de garfo e faca em punho, o devoram em meio a tantas outras ofertas. Eles nem sequer reparam no verdadeiro gosto do “prato principal”, o que vale é o prazer rápido e imediato. Neste sentido, o roteiro escrito por Katherine Fugate, colaboradora do diretor em Idas e Vindas do Amor (2010), é certeiro. Os diálogos são primários, sem exigir muito da massa encefálica, há algumas frases de efeito que, no intuito de causar reflexão, tropeçam numa montagem de ritmo meio alucinado. Aliás, o montador em posse do excesso de cenas, para dar utilidade a ilustres participações, que vão desde o veterano-que-dispensa-crachá Robert De Niro ao canastrão-mor-de-Hollywood Ashton Kutcher, executa cortes de maneira grotesca excluindo o significado do plano, o episódio do hospital com Halle Berry e De Niro são os maiores exemplos.
A trama reúne um grande número de personagens, quase todos às voltas com problemas pessoais exatamente no último dia do ano, e deixa latente a semelhança na estrutura do roteiro com outras duas películas. Em especial Short Cuts — Cenas da Vida (1993), do saudoso mestre Robert Altman, e também Magnólia (2001), do cultuado Paul Thomas Anderson. Porém, a comparação entre Noite de Ano Novo com qualquer um dos dois filmes soa constrangedora, principalmente para os admiradores dos primeiros.
Tanto Altman quanto Anderson imprimem nos seus personagens um caráter individualizado, em que as suas dores são representadas por signos de tamanha sutileza que são capazes de estabelecer total empatia junto a plateia, sem precisar se ancorar no pieguismo. Coisa que, definitivamente, Noite de Ano Novo não consegue. Entre outros porquês, pela irregular montagem, vale repetir mais uma vez, - que tem a necessidade de destacar mais um personagem do que outro em meio a um batalhão deles - o filme ainda fica comprometido por algumas cenas grotescas que minimizam a importância daquilo que mais deveria importar: dramas humanos, mesmo se tratando de uma comédia. A verdade é que Noite de Ano Novo mistura os dois elementos e tenta empurrar goela abaixo do público uma legítima dramédia, que pouco funciona.
“...E Deus criou a mulher”
O diretor Garry Marshall é um veterano na arte de levar à tela grande enredos simpáticos e bem representados por atrizes talentosas e carismáticas. Em Uma Linda Mulher (1991), o nome de Richard Gere é o primeiro nos créditos, mas é Julia Roberts quem rouba a cena em cada centímetro de celulóide, fato que voltou a ocorrer com Noiva em Fuga (1999), com o mesmo Gere, e Marshal na direção. Anne Hathaway, uma jovem atriz então desconhecida, cumpre com galhardia a mesma tarefa em O Diário da Princesa (2001). Talvez, a única bola fora do veterano cineasta e produtor tenha sido a tentativa de tornar a celebridade-problema Lindsay Lohan em profissional de primeira grandeza, ao colocá-la como protagonista de uma história em que divide a cena com uma lenda viva de Hollywood, Jane Fonda. Além dela, Lindsay tinha pela frente a camaleônica Felicity Huffman, mais conhecida pela série de TV Desperate Howsewives e responsável por uma das melhores performances do cinema nos anos 2000, com a produção independente Transamérica (2006).
Noite de Ano Novo traz de brinde um festival de mershandisings, que chegam a corar de vergonha até o mais incauto dos publicitários. As marcas pulam na tela e remetem às novelas globais de Manoel Carlos. Tem indústria de cosméticos, do setor elétrico e uma aparição forçada do prefeito da big apple, Michael Bloomberg. O que faltou de sutileza por parte da produção, assinada pelo próprio Marshall, sobrou em habilidade na direção de três grandes atrizes cuja competência cênica chega a ofuscar o brilho dos fogos de artifícios e do restante do elenco. Parte dele muito artificial também. Halle Berry vive uma dedicada enfermeira consternada com a situação de um paciente moribundo (De Niro). Sem precisar fazer muito esforço, mesmo com poucos minutos, Halle se faz notar expressando um olhar de compaixão tão doce e sincero que responde com precisão ao drama vivido por seu paciente em estado terminal.
Hilary Swank interpreta a produtora da festa da Times Square. Sob sua batuta, existe uma horda de funcionários que precisam estar antenados a cada observação para que tudo ocorra bem. O que quase não acontece graças a um defeito mecânico na gigante bola luminosa que simboliza a contagem regressiva. Hilary, em posse da mesma verve dramática que já lhe rendeu dois prêmios da Academia, humaniza o papel da chefona Claire Morgan de maneira tocante. Não foi à toa que a “menina de ouro” ficou com uma das “melhores” falas do roteiro. Durante uma coletiva de imprensa, em que precisava justificar o defeito, ela discursa e dá uma lição de moral a todos, com timing exemplar para o drama, Swank sensibiliza hipnotizando até o mais frio dos espectadores. Provando ser esta uma das principais motivações da película para faturar alto nas bilheterias, naturalmente.
Já a musa das musas hollywoodianas, Michelle Pfeiffer inicia e fecha o filme. Sua personagem, uma secretária de meia-idade infeliz e escrava do trabalho, resolve fazer uma lista de resoluções para serem cumpridas naquele período. Diante da negação do chefe em lhe dar duas semanas de folga, a começar pelo dia 31 de dezembro, ela se demite e tenta com a ajuda de um jovem colega de trabalho, vivido por Zac Efron, concretizar parte do que projetou. Tudo para tornar o último dia do ano um dia menos infeliz, na sua enfadonha rotina.
Em mais de trinta anos de carreira, este é um dos poucos personagens que menos exija de sua estonteante beleza clássica evidenciada nos excelentes Ligações Perigosas (1988) e A Época da Inocência (1994), sem precisar citar mais alguns. Em Noite de Ano Novo, Michelle vive a simples secretária Ingrid Smithes, despida de qualquer glamour e visivelmente com pouca maquiagem, o que destaca os sinais de seus respeitáveis 53 anos de vida. Sua Ingrid é um achado entre tantos perdidos. A luminosa estrela subverte as limitações do fraco roteiro e não se deixa condicionar por estereótipos, como acontece com outras colegas suas, vide a histriônica Sofia Vergara, ou até mesmo a bela Katherine Heigl.
Zac Efron, a exemplo de Ashton Kutcher, continua a se firmar como astro canastrão, no entanto, sua performance não compromete a química com La Pfeiffer, e até contribui para que ela cresça mais em cena. A loira aproveita cada segundo em que aparece com uma interpretação absolutamente convincente e deixa saudade quando some. Por si só a sua subtrama já valeria um longa-metragem. Ou, numa hipótese bem mais provável, os poucos e significativos trechos dela no filme poderiam render um curta-metragem montado por algum fã fervoroso para salvar o youtube do marasmo. Vale lembrar que Garry Marshall já a dirigiu no pouco visto Frankie e Johnny (1991), em que a eterna mulher gato vive um papel semelhante, o de uma mulher comum. Uma amargurada garçonete que se envolve com um colega de trabalho (Al Pacino).
Noite de Ano Novo estreou desbancando o quarto filme da Saga Crepúsculo do topo da lista dos mais vistos no último final de semana. Mas, a arrecadação ficou aquém do esperado pelos produtores em comparação com Idas e Vindas do Amor, que se passa no dia dos namorados, e que também conta com elenco estelar e cujo roteiro foi costurado apressadamente semelhante a uma colcha de retalhos. E quanto ao resultado? Uns acham lindo, outros cafona, mas acaba sendo útil de uma maneira ou de outra.
Caso os produtores resolvam explorar mais uma data comemorativa, fica a dica: O Dia das Mães. Com uma trinca de genitoras à altura de Halle Berry, Hilary Swank e Michelle Pfeiffer, certamente o projeto já terá valido a pena.
Por Walter Ferrera
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