A cada novo longa-metragem lançado, a alcunha que se reforça não é outra, já virou uma agradável redundância: genial! Em “A Pele Que Habito” (2011), o cineasta espanhol Pedro Almodóvar transgride sem precisar chocar, envolve habilmente seu espectador através de uma narrativa, mais uma vez, engenhosa e impressiona com uma trama mais uma vez absolutamente original.

Está aí o “miolo”, todavia é nas sub tramas que o diretor espanhol revela pouco a pouco e de maneira absolutamente surpreendente o mundo que ronda o seu protagonista. Como convém falar de uma obra sua, o espanhol explora uma linha narrativa didaticamente divididas em 3 atos, porém, sem obedecer a regra da linearidade, que nas mãos de um roteirista menos inspirado resultaria em mais um simples feijão com arroz. Os pratos que Almodóvar oferece a seu público, tem sempre um “quê” a mais. Requinte de um gênio.
O universo feminino, tema recorrente de seus trabalhos, aparece aqui num papel de coadjuvante. Em “A Pele Que Habito” convém falar mais das ambições, vaidade, sentimento de vingança e desejo, predicados costumeiramente vinculados a uma ótica de mundo masculino. É só observar a maneira como o personagem de Banderas empunha um revólver para resolver determinadas situações. Feitos um para o outro, ambos são cúmplices, a arma reforça a conotação um membro em riste, isso mesmo, vale usar aqui uma analogia fálica. Sem falar do possante carro, que aparece como figurante, porém sempre destacado nos planos evidenciando a “viril” personalidade do protagonista.
A forma como Almodóvar mostra os experimentos científicos é de um preciosismo de dar inveja em filmes de ficção ciêntifica hollywoodianos. Robert os manuseia com destreza e habilidade, uma metáfora que pode facilmente ser associada ao domínio da técnica cinematográfica de seu realizador. Este, por sua vez, em cada milímetro de película demonstra para o espectador como é que se faz cinema de qualidade.
A direção de arte mais uma vez salta aos olhos. A confortável casa do médico, junta o clássico com o moderno. Quadros renascentistas e barrocos remetem para o conceito de belo naquela época, convém lembrar que o protagonista é um cirurgião plástico. Os lustres com ares futuristas, os abajures vermelhos e mais, o figurino de Vera, desenhado pelo estilista Jean Paul Gaultier, colaborou com Almodóvar em “Kika” (1992). Situa a plateia que aquele é um universo Almodovariano por excelência.
Como forma de complementar a sua peculiar visão de mundo, traço naturalmente bem presente em seus filmes, os momentos de “sacanagem” se fazem oportunos, ora dentro do mato representado numa das sequências mais curiosas do filme, ora numa transa bizarra entre o irmão de Robert, Zeca, um ladrão disfarçado de tigre para fugir da policia, aproveitando o período de Carnaval, e Vera. Nesta cena, muito emblemática, o personagem de Banderas aponta para uma arma para os dois, pois sente-se ferido em seu orgulho de macho, mas atira em Zeca, matando-o. Momentos depois, ele vai para a cama com Vera tentando força-la a ter relações sexuais. Outra alusão ao universo masculino, um homem poderoso após despachar o algoz de seu objeto de desejo, este um experimento seu que vive sob clausura. Em suma, a cena é uma síntese sutil e inteligente do machismo, sentimento de posse e ganância.
Antônio Banderas carrega consigo uma tal sobriedade, que em meio a sua experimentações, ninguém ousa chamá-lo de cientista maluco. Com um olhar sedutor, porém, nunca canastrão, aos moldes dos personagens que deu vida em Hollywood. Ele convida a plateia a fazer parte de seu surpreendente jogo. Não há como se manter incólume. Todos estão diante um personagem frio, um assassino, cientista disposto a violar preceitos de bioética, mas que todavia consegue estabelecer uma tremenda empatia com o público, resultado alcançado com uma direção de atores acima da média. Também pudera, Banderas entrou no cinema guiado por Almodóvar, e pelo que parece, já desfrutando de alguma maturidade, encontra nele, com seu “A Pele Que Habito”, um veículo para se firmar como ótimo ator de cinema e não apenas um astro.
O resto do elenco segue o mesmo padrão de qualidade. Ninguém destoa. Em gestos e palavras, todos estão meticulosamente bem ensaiados. Marisa Paredes colaboradora habitual de Almodóvar, que esteve em “A Flor do Meu Segredo” e “Tudo Sobre Minha Mãe”, é o centro de um dos melhores diálogos da película. Mãe de um bem sucedido médico e de um bandido, envolvida em situações complexas por ambos, num dado momento ela lembra ao público que pariu dois monstros.
Em “A Pele Que Habito”, que está em cartaz desde o dia 4/11. Tem tudo para ser mais um daqueles exemplares de Almodóvar que costuma ser o centro de discussões entre rodas de amigos, dada a sua rica carga semântica, sejam esses amigos cinéfilos, apreciadores de sua magistral obra, ou não.
Veja o trailer:
Por Walter Ferrera
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